terça-feira, 26 de junho de 2012

A DOUTRINA DOS REFORMADORES




Foi sobre a tese do auto-testemunho da Bíblia que os Reformadores arquitetaram a sua teoria da Sagrada Escritura, precisamente porque antes e acima de tudo a sua teologia era uma teologia de fé-uma teologia revelada. Daí, o ponto de partida: a resposta da fé ao problema da mensagem bíblica, que aceitaram ipsis verbis e, em obediência à mesma, procuraram compreender a Bíblia, tal como a Bíblia se compreendia a si própria. Como se viu, o método da Reforma é considerado ilegítimo e fútil por todos os que julgam que a teologia deve assentar em bases puramente racionais. Mas os Reformadores foram teólogos da fé, utilizando apenas a razão em resposta e em obediência à revelação divina. Isto queria dizer que esses teólogos se comprometiam na fé a receber o testemunho da Palavra de Deus, mesmo no que se refere à sua existência e à sua natureza.

Os Reformadores acreditavam, pois, que a Bíblia fora outorgada por Deus, e nessas condições pelo mesmo Deus inspirada, tanto no conteúdo como na forma. Não que dessem qualquer passo fundamental, pois a Igreja da Idade Média seguia o mesmo ponto de vista; mas o certo é que em todas as suas obras, fácil é verificar uma aceitação total da inspiração e da autoridade da Bíblia. É o que se verifica, mesmo no caso de Lutero, assaz livre na utilização dos textos e na crítica de algumas seções individuais. Procura saber-se agora se Lutero era um crítico primitivo ou então o que aceitou, como inspirada, era não a redação da mensagem, mas apenas a mensagem, e nada mais. Diz-se que a opinião de Lutero era dos autênticos Reformadores, mas que pouco a pouco adulteraram-na alguns sucessores legalistas. Contra este modo de ver, porém, é de notar que Lutero freqüentemente exaltava a letra da Escritura e que, na maioria dos casos, a liberdade de crítica se estendia aos livros de cuja canonicidade tivesse sérias dúvidas. Dum modo geral, Lutero não foi além dos seus colegas Reformadores em matéria de assuntos bíblicos.

Apesar da inspiração e da autoridade, a Bíblia era já por si só suficiente em matéria de fé e de conduta. Seria exagero afirmar-se que os Reformadores arvoraram a Bíblia em única autoridade da Igreja; mas pode dizer-se que a consideraram suprema autoridade, da qual derivaram todas as outras autoridades, que por isso lhe estão sujeitas. Como outorgada por Deus, nada lhe é estranho no que respeita à salvação e à vida dos cristãos. Toda a base da doutrina e da crença da Igreja deve assentar num texto bíblico, ou em nítida dedução do mesmo. Os calvinistas foram mais longe, aproveitando-se da Bíblia para a organização do culto da Igreja, coisa que não fizeram os luteranos e os anglicanos, negando autoridade aos livros sagrados em tal matéria, ou seja, admitindo apenas o que não repugnasse às Escrituras.

A razão da insistência em tal supremacia da Bíblia, residia na preocupação em eliminar a doutrina medieval da autoridade da tradição e da Igreja em pé de igualdade com a Sagrada Escritura. Deu-se um outro passo em frente e na mesma direção, ao afirmar-se que a Bíblia tem de ser interpretada somente no sentido literal e não em conformidade com o quádruplo esquema da exegese medieval. Isto não quer dizer que seja impossível introduzir um outro sentido metafórico ou simbólico naquilo que, na realidade, não passa duma metáfora ou dum símbolo. Apenas se pretendia evitar um sentido literal exagerado nas afirmações vulgares da Escritura, a não ser que a própria Bíblia o determinasse expressamente, como por exemplo, interpretando a passagem do Mar Vermelho como uma figura do batismo, ou referindo a Cristo o sacerdócio do Velho Testamento. Permitiam-se comparações e imagens para edificação do espírito, mas não lhes era reconhecida qualquer autoridade em matéria de fé e de prática. Se, porventura, surgissem dificuldades de interpretação, buscar-se-ia uma solução adequada dentro das próprias Escrituras, de maneira que os textos mais obscuros pudessem ser compreendidos à luz de outros de mais fácil interpretação. Por duas razões era de certo relevo esta exegese: primeiro, porque se evitavam muitas confusões originadas pelo esquema medieval, de maneira a tornar possível a criação duma teologia genuinamente bíblica; em segundo lugar, porque eliminavam os intérpretes oficiais da Bíblia, os únicos que sabiam manejar a complicadíssima máquina do esquema quádruplo.

Os Reformadores aceitaram a inspiração e a autoridade de todas as partes da Bíblia canônica, embora a cada uma delas não fosse atribuído o mesmo grau de importância. O fato de se insistir na inspiração de toda a Bíblia canônica, tinha em vista alguns anabatistas, que não admitiam a inspiração de alguns livros do Velho Testamento. Mas os Reformadores depressa compreenderam que o Velho Testamento é uma parte essencial e importantíssima que dá testemunho de Jesus Cristo e da Verdade que nos salva. Daí o lembrarem que a doutrina moral do Velho Testamento é eternamente válida como expressão da vontade de Deus ao Seu Povo. Os princípios teológicos em que se assentam as relações de Deus com Israel são as mesmas em que se baseiam as Suas relações com os cristãos e com a Igreja Cristã. O Velho e Novo Testamento completam-se: um é a preparação, o outro a realização.

Todas as partes da Bíblia são dotadas de inspiração e de autoridade, -afirmam os Reformadores-mas nem todas do mesmo modo. A legislação mosaica do Levítico não tem o mesmo valor espiritual ou teológico que o Evangelho de João, ou até mesmo o Decálogo. De certo modo a Bíblia, podemos afirmá-lo, é semelhante à Igreja, como o corpo de Cristo. Todos os membros constituem o corpo e pertencem-lhe necessariamente, embora seja diferente a importância de cada um deles. Uns são mais utilizados que outros; uns de maior importância vital que os outros, de maneira a serem indispensáveis à subsistência do corpo. O mesmo se dá com a Bíblia. Embora sejam prejudiciais possíveis alterações, há que concordar que umas partes não são tão indispensáveis como outras. Recebida a mensagem do Evangelho, podemos ser cristãos só com um fragmento da Escritura; mas cristãos perfeitos, completos, totais, só por mercê e graça de Deus.

Surge, todavia, uma dificuldade, ao procurarmos distinguir entre a maior ou menor importância dos diferentes textos, pois algumas considerações meramente subjetivas ameaçam restringir ou talvez falsear a nossa maneira de ver. Tanto Zuínglio como Lutero foram autores de preciosas regras, que não diferem muito entre si: a importância dum texto depende da medida em que serve para aumentar a glória de Deus e revelar e exaltar Jesus Cristo. É por isso, que algumas partes da Bíblia fazem-no mais claramente que outras, em princípio consideradas como textos importantes da Escritura. Em resumo, todo o Livro Sagrado é de certo modo orientado para este duplo fim.

Os Reformadores acentuaram a importância da letra da Bíblia, mas não à custa da soberania do Espírito Santo na aplicação e no uso da sua mensagem. Na opinião dos Reformadores o Espírito Santo não era apenas o autor da Escritura, pois também determinou a aplicação da mesma àquele duplo fim, e deu ao crente uma persuasão interior da autoridade daquela mensagem como verdade revelada. Quanto ao primeiro destes pontos nada há a acrescentar, a não ser o seguinte: enquanto se admite a clareza dum texto bíblico, de fácil compreensão, portanto, por outro lado, para uma compreensão mais profunda, mais íntima, algo mais é necessário que a simples inteligência racional. Para bem se apreender a Escritura, requer-se aquela luz do Espírito Santo, que é para o indivíduo o complemento indispensável da revelação exterior de Deus.

Alguns teólogos modernos consideraram esta luz como verdadeira inspiração de acordo com a opinião dos Reformadores, ou seja, que a Bíblia é inspirada apenas enquanto o Espírito Santo se serve deste ou daquele texto para iluminar o crente. Mas na mente dos Reformadores parece haver mais de um vestígio que possa identificar a iluminação individual com a inspiração como tal. A Bíblia é um documento inspirado da revelação divina, quer este ou aquele indivíduo receba ou não o seu testemunho. A revelação e a sua manifestação duma forma escrita constituem ações objetivas. A iluminação pelo Espírito Santo é o complemento subjetivo destas ações no íntimo do crente e para a salvação deste. E como é Deus o Espírito Santo que nos dá o documento objetivo, também é Ele que efetua a iluminação subjetiva. Daí que a mensagem e a aplicação da mensagem pertencem ambas a Deus.

O fato de existir aquela iluminação interna é a suprema garantia da autenticidade do documento, quer na doutrina geral, quer no testemunho que apresenta de si próprio. Embora os Reformadores aceitassem a Bíblia pela fé, não desconheciam os problemas racionais que poderiam surgir, se bem que em nada se parecessem com os que atualmente se levantam. Muitas razões podiam já ser apresentadas a comprovar o bom acolhimento dado aos Livros Sagrados. Como Calvino, recorreriam às características que os assinalam como documento inspirado: a dignidade, o estilo literário, a antigüidade, a combinação da profundeza e simplicidade de conceitos, o poder de narração, a exatidão na previsão do futuro, etc.. Mas em última análise a razão profunda e real da crença é aquele conhecimento íntimo da verdade da Escritura, que necessariamente se encontra presente quando o Espírito Santo aplica à alma essa verdade. Quanto ao testemunho pessoal da Bíblia há a acrescentar a garantia íntima do Espírito Santo. Mas aquele argumento é racional apenas para o crente. Por outras palavras, a verdade do testemunho bíblico não pode ser apenas questão de debate intelectual ou acadêmico. É a experiência, é o íntimo de cada um que fala. É a fé, que supõe o Espírito Santo.

E foi assim, ao aceitar a supremacia do Espírito Santo, que os Reformadores se defenderam do literalismo morto e do racionalismo escolástico na sua interpretação das Escrituras, mantendo um alto conceito da Bíblia e da sua inspiração. É que acreditavam na Bíblia como verdade inspirada, e como a Palavra que o Espírito Santo nos confiou; palavra essa, que merece todo o nosso respeito e obediência. Sempre frisavam que Deus é Autor da Escritura, e a Voz divina que ouvimos, ao lermos os Sagrados Livros. É que a Bíblia é mais que um simples livro acadêmico da verdade divina, um Euclides da Fé Cristã. O texto não é apenas dado por Deus, mas por Deus, seu Autor, é aplicado. Devemos, pois, respeito e obediência à Bíblia, não por ser letra fixa e estática, mas porque, sob a orientação do Espírito Santo, essa letra é a Palavra viva do Deus vivo dirigida não só ao crente individual mas à Igreja em geral.

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